A educação na matriz cultural africana - Blog do CaraECULTURANEGRA

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4 de junho de 2019

A educação na matriz cultural africana





A educação na matriz cultural africana

Roger Cipó – Exposição AFETO


Ao se abordar, sob qualquer ângulo, posturas assentadas em africanidades, aparentemente não há como detectar qualquer fundamento sem que se leve em conta a influência religiosa, visto que é a partir da religiosidade, segundo Sodré (2017), que o africano e sua descendência cultural formatam a visão de indivíduo. Decorre que há, necessariamente, que se considerar tal aspecto como filosofia fundante dos caminhos que podem conduzir às análises não só da pujante permanência da tradição africana em meio hostil, mesmo após meio milênio de início da violenta diáspora compulsória mas, também, do processo de ensino-aprendizagem atuante nesta parcela populacional, posto que é da relação com o divino que decorre o entendimento antropológico pertinente, onde o indivíduo é visto como agente social integrado e sujeito a tal processo. Se assim é, parece pertinente abordar os pilares pedagógicos inerentes ao mesmo; portanto, é com este viés e objetivo que esta análise será, a seguir, desenvolvida. Fundamentos teológicos Diante do pretenso quadro conceitual acima, o objeto deste estudo exige a apresentação dos fundamentos teológicos em que se assentam os procedimentos sociais de matriz africana, caso se admita que esses se baseiam na religiosidade daquela matriz. Por princípio, é preciso repisar, com Bâ (1997, 25), que esta filosofia considera que tudo o que é material, encontra base de sustentação no mundo espiritual que, com aquele, interage, constante e continuamente, em movimento de retroalimentação. Decorre desta crença a visão da dualidade em tudo o que acontece, ou seja: o que é bom traz, consigo, o que não o é; a recíproca é perfeitamente verdadeira. Como exemplo: se a vida de alguém se encontra em um momento em que o prazer material é potencializado, esta é a influência pontual do sagrado naquele específico estágio do destino individual; eis aí a fonte invisível, a ação do orixá, em que o visível encontra assento. Porém, o resultado desta influência se materializa, efetivamente, apenas na atitude real do indivíduo, que poderá optar por satisfazer-se com o reconhecimento alheio de sua atuação social, por exemplo; ou, pela busca do prazer na adoção, talvez, de atitudes essencialmente mundanas, nem sempre de boa recomendação. Portanto, pode-se afirmar que, assim sendo, está liberado o livre arbítrio, com as consequências que, de seu exercício, naturalmente advirão. Em resumo: o resultado da potencial ação do sagrado na vida do indivíduo, depende, em grande proporção, da decisão material deste sobre o que fazer com ela. Outro componente importante a destacar é: toda a energia natural flui do mundo espiritual para o material; mas, àquele retorna, em movimento circular que o potencializa, quando o fiel, celebrando o sagrado, a este dedica atitudes e destina oferendas, em demonstração de reconhecimento, agradecimento e submissão. Neste ponto, parece adequado abordar a fundamentação da oferenda nesta matriz religiosa: muito além do mero ofertar, é ato que representa o reconhecimento de que tudo o que o sagrado proporciona ao mundo natural, serve para a sustentação da vida, quer pela forma animal, quer vegetal, quer mineral. Isso posto, a oferenda, por sacralizada, significa, sobretudo, a apresentação, ao divino, do cuidado que o fiel e sua comunidade dispensaram àquilo que lhes foi cedido, por aquele, como bem de vida; assim, também a disponibilidade de cada fiel e de cada comunidade em partilhar, com o divino, os bens que lhes foram proporcionados. Daí a circularidade do asè. Reforçando esta visão, cabe retomar o que ensina Bâ (1997, p. 25): “Na África, o lado visível e aparente das coisas corresponde sempre a um aspecto invisível […], que é como a sua fonte e o seu princípio”. Isto porque, para esta visão de mundo, a mesma força – asè – que mantém a vida, também mantém, pela fertilidade do solo, o mundo inanimado; ou seja: é a força divina que, ao fertilizar a terra, faz retornar, à vida, o que nela foi depositado, mesmo estando morto. Diante deste entendimento, que compreende a circularidade da natureza, parece incontornável admitir que os mais velhos usufruam do respeito dos mais novos; porém, é a eles que cabe, diante da oralidade em que se assenta a transmissão dos conhecimentos, a responsabilidade pela manutenção do ciclo ensino-aprendizagem.
Em outras e mais simples palavras: a educação; mas esta, quando entendida em sua forma ampla, qual seja: a transmissão e compartilha de saberes por meio da convivência social. Ainda desta mesma linha, decorre outra constatação: a vida é contínua; não se interrompe a cada morte mas, sim, permanece e se transmite a cada nascimento; isso porque, se o asè permeia toda a natureza, ele não se interrompe mas, sim, é transmitido. Não é outro o ensino de Bâ (2003, p. 23): “Na África tradicional, o indivíduo é inseparável de sua linhagem, que continua a viver através dele e da qual ele é apenas um prolongamento”, ao que Munanga (1984, p. 70) complementa: “a morte não tem um caráter trágico na África, pois há apenas o desaparecimento de um ser cuja realidade última é inteiramente relativa às entidades preexistentes […] A morte não é uma ruptura, é uma mudança de vida”. Daí que, neste viés, é necessária a seguinte compreensão: não há vida nova mas, sim, a transferência da mesma vida pela via intergeracional, o que faz com que cada fiel tenha o dever de melhorá-la para a transmitir, melhorada, à própria prole; o que, evidentemente, só pode ocorrer pela via educacional conforme acima entendida. Porém, onde a vida se transmite? Apenas por dois caminhos e lugares: a terra e o útero; daí que, conforme já abordado, a terra e a natureza inanimada merecem cuidado; de certa forma, até mesmo, veneração. Para explicitar a identidade entre estes dois elementos transmissores da vida, talvez se mostre útil recorrer à explicação de Bâ (2003, p. 196), quando discorre sobre a tradição africana no pós-circuncisão: Depois da operação, todos os prepúcios foram enterrados. Na antiga tradição africana, o prepúcio é considerado um símbolo de feminilidade, na medida em que recobre o pênis e o envolve em uma espécie de obscuridade, pois tudo o que é feminino, materno e germinativo se realiza e se desenvolve no segredo da escuridão dos lugares fechados, seja dentro da mulher ou no seio da Mãe-Terra. Quanto à terra, a abordagem acima parece suficiente; mas, cabe ouvir a fala de Munanga (1984, p. 70) que, para complementá-la, vai além quando opina: Cultuando os ancestrais, ao mesmo momento em que ele vive a solidariedade da linhagem, o jovem africano é introduzido aos valores básicos de sua cultura: […]. Isso explica como as religiões africanas encontraram condições para se manter na América do Sul e no Caribe.














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