Políticas de ação afirmativas para negros no Brasil: Considerações sobre a compatibilidade com o ordenamento jurídico nacional e internacional
(*) Luiz Fernando Martins da Silva
"Todos os animais são iguais perante a lei, mas alguns animais são mais iguais que outros"
(A Revolução dos Bichos, George Orwell)
Introdução
A questão racial no Brasil tornou-se palco das atenções da sociedade e do Estado,
notadamente após o presidente Fernando Henrique Cardoso reconhecer em 1995 que
havia racismo e desigualdades raciais no país, ato que se fez acompanhar das
primeiras políticas públicas específicas para a população negra objetivando a
superação deste quadro. Vale ressaltar que tudo isso foi produto das denúncias e das
reivindicações históricas e atuais do movimento negro e de setores progressistas da
sociedade civil.
Contudo, a implantação de políticas, programas, projetos e ações governamentais de
caráter afirmativo para negros resultaram em uma polêmica há muito não vista. Podese
dizer que um dos principais momentos dessas discussões ocorreu quando da
implantação, no ensino público superior, de reserva de vagas para negros na UERJ,
na UENF e na UNEB em 2003(1).
No campo jurídico a questão está distante de pacificação e de consenso, haja vista,
especialmente, a existência de ações judiciais que contestam a constitucionalidade
dessas medidas afirmativas. Operadores do Direito, Professores e Pesquisadores da
área jurídica divergem sobre a oportunidade e a constitucionalidade das políticas
implantadas pelo Estado brasileiro por diversos motivos, dentre os quais: a violação do
princípio da igualdade, do mérito, da proporcionalidade, da Federação, da autonomia
universitária; e até mesmo a inexistência de critérios seguros ou científicos para se
identificar os beneficiários das medidas destinadas aos pardos e às pessoas com
deficiência. Outras críticas são dirigidas aos critérios adotados por algumas
universidades para selecionar e identificar os beneficiários das políticas afirmativas,
como ocorre no processo de seleção da Universidade de Brasília.
Demais disso, não podemos olvidar a insuficiente interdisciplinaridade existente entre
ciências jurídicas e ciências sociais no Brasil. A carência de artigos, dissertações e
teses enfocando o assunto nas escolas de Direito tem colaborado para o pouco
desenvolvimento do tema direito - relações raciais. Nesse sentido, a jurista Dora de
Lima Bertúlio(2), refletindo sobre essa realidade, pontifica que:
Na medida em que o conhecimento e a reflexão, indutores que são de nossa
identidade, são componentes privilegiados da mudança de comportamentos,
intervenção e julgamentos das pessoas em suas relações interpessoais e com o
Estado, a carência de estudos e trabalhos sobre racismo, discriminação racial e
direitos raciais da população negra permite perpetuar: a) os estereótipos racistas de
incompetência do povo negro para se autogerir e desenvolver adequadamente nas
sociedades contemporâneas (socialistas ou capitalistas); e b) o descaso do setor
jurídico, na sociedade brasileira, para implementar direitos específicos que diminuam o
impacto do racismo na qualidade de vida de quase 50% da população nacional.
A tendência generalizada de os currículos das faculdades de Direito serem por demais
influenciados pela dogmática, pelo formalismo e pelo positivismo jurídicos consiste em
outro fator que ratifica as considerações acima colocadas. Além do mais, não é
comum que os operadores do direito superem essa formação tradicional dedicando-se
a estudos que tratem das novidades doutrinárias havidas no próprio campo jurídico, e,
especialmente, a leituras de obras da sociologia, da antropologia, da filosofia, e da
ciência política.
Por outro lado, a questão sobre a constitucionalidade de políticas de ação afirmativa
depende especialmente do paradigma jurídico com o qual o intérprete opera. Do ponto
de vista do positivismo jurídico, por exemplo, a ausência do termo "ação afirmativa" no
Texto Constitucional impediria a criação e a implantação dessa política pelo Estado.
Isso porque o positivismo jurídico opera exclusivamente com o método lógicodedutivo,
que, assumindo os princípios da coerência e da completude do ordenamento
jurídico, "procura a melhor norma jurídica dentre as normas positivas válidas,
descartando assim considerações interpretativas sobre as demandas e necessidades
humanas em uma sociedade"(3). Ademais, e esse ponto é fundamental, sendo a
maior parte das Constituições em vigor de matriz liberal, e, portanto, baseadas na
proteção de direitos civis e políticos contra qualquer tipo de discriminação, justificar a
discriminação positiva pela ótica positivista é virtualmente impossível.
O mesmo não pode ser dito do pragmatismo jurídico, paradigma que é essencial para
a justificação legal da discriminação positiva. Não é simples coincidência histórica o
fato de tais políticas terem sido instituídas pela primeira vez, no Ocidente, nos Estados
Unidos, país berço da tradição pragmatista. "O método de operação do pragmatismo
jurídico é conseqüencialista, isto é, o que importa no julgamento da legalidade de uma
norma são os resultados de sua aplicação, seu caráter benéfico para a sociedade
onde se aplica, e não a prova de sua dedução de uma norma positiva mais geral"(4). A
norma positiva importa, mas é apenas mais uma fonte entre os dados empíricos
oferecidos pelas relações sociais.
Deve-se notar, entretanto, que o pragmatismo jurídico define um método, uma maneira
de proceder, mas não o conteúdo do que é benéfico. "A adoção de políticas que
operam com discriminação positiva só pode ser completamente justificada se, além do
procedimento pragmatista, fizermos uma interpretação dos valores morais da
sociedade em questão"(5). Essa tarefa pode ser melhor empreendida se sairmos do
âmbito estrito da teoria do direito para o da teoria política normativa. Uma vez que
essa transposição é feita, notamos que o paradigma positivista tem historicamente
servido à posição liberal clássica, hoje também conhecida como conservadora, a qual
alça a igualdade formal da lei acima da igualdade de fato no convívio social. Para
alguns autores dessa corrente, a igualdade formal funciona, de fato, como suporte
para a expressão de capacidades e aptidões desiguais entre os homens (por exemplo,
Hayek).
Por fim, no contexto das divergências jurídicas, percebe-se uma resistência incomum
por parte de alguns dos autores contrários a essas políticas públicas para a população
negra, haja vista que não opuseram semelhante oposição às medidas afirmativas
adotadas para pessoas com deficiência e para as mulheres, por exemplo. Algumas
das opiniões emitidas por juristas conceituados podem facilmente ser consideradas
discriminatórias. E, também sugerem que ainda privilegiam uma visão freyreana da
realidade das relações étnicas e raciais no Brasil.
Leia mais.: http://www.palmares.gov.br/wp-content/uploads/2010/11/Pol%C3%ADticas-de-a%C3%A7%C3%A3o-afirmativas-para-negros-no-Brasil.pdf
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