Como a flor cortada rente e desfolhada
ou os olhos vazados da criança
e o seu fio de pranto tênue e impotente
assim a noite caminha com os astros todos em vertigem
até que se atinge o ponto da mudez
a pesada mó triturando a sílaba
a garganta com as cordas dilaceradas
e uma lâmina ácida e pontiaguda enterrada ao nível da carótida
Entenda-se isto como noite e o seu transe derradeiro
tanto assim que a flor desfeita
não embala o coração do poeta
oh não
porque a flor defunta
se voa
não sobe nunca
e só dura
o espaço breve duma nota
Assim o canto se detém imóvel
como se da flauta
falhando súbito
na boca do poeta
ficasse o hiato
ou a saliva
de um tempo devassado por insectos cor de cinza
A voz suspensa e negada
cede a vez à letra amorfa
inscrita no silêncio
com seu peso
de chumbo e olvido
acaba o poema
e um ponto final selando tudo.
O Prêmio Camões, criado em 1988 pelos portugueses e
brasileiros, distingue todos os anos escritores
dos países lusófonos.
O poeta Arménio Vieira foi a escolha do júri de 2009
para o Prêmio Camões, tornando-se assim o primeiro
cabo-verdiano a ser distinguido com um dos maiores
prêmios literários da língua portuguesa.
foto JULIEN LAGARDE
|MAR
Mar! Mar!
Mar! Mar!
Não o mar azul
De caravaelas ao largo
E marinheiros valentes
Não o mar de todos os ruídos
De ondas
Que estalam na praia
Não o mar salgado
Dos pássaros marinhos
De conchas
Areia
E algas do mar
Mar!
Raiva – angústia
De revolta contida
Mar!
Do não-repartido
E do sonho afrontado
Mar!
Quem sentiu mar?
|ISTO É QUE FAZEM DE NÓS
Isto!
E perguntam-nos:
- sois homens?
Respondemos:
- animais de capoeira.
Dizem-nos:
- bom dia.
Pensamos:
lá fora...
Isto é que fazem de nós
quando nos inquirem:
- estais vivos?
E em nós
as galinhas respondem:
- dormimos.
A Ovídio Martins e Oswaldo Osório
Em verdade Lisboa não estava ali para nos saudar.
Eis-nos enfim transidos e quase perdidos
no meio de guardas e aviões da Portela
Em verdade éramos o gado mais pobre
d’África trazido àquele lugar
e como folhas varridas pela vassoura do vento
nossos paramentos de presunção e de casta.
E quando mais tarde surpreendemos o espanto
da mulher que vendia maçãs
e queria saber d’onde… ao que vínhamos
descobrimos o logro a circular no coração do Império.
Porém o desencanto, que desce ao peito
e trepa a montanha,
necessita da levedura que o tempo fornece.
E num camião, por entre caixotes e resquícios da véspera,
fomos seguindo nosso destino
naquela manhã friorenta e molhada por chuviscos d’inverno.
|CONSTRUÇÃO NA VERTICAL
Com pauzinhos de fósforo
podes construir um poema.
Mas atenção: o uso da cola
estragaria o teu poema.
Não tremas: o teu coração,
ainda mais que a tua mão,
pode trair-te. Cuidado!
Um poema assim é árduo.
Sem cola e na vertical,
pode levar uma eternidade.
Quando estiver concluído,
não assines, o poema não é teu.
(Textos retirados de uma antologia, ainda inédita, organizada por José Luiz Tavares)
Arménio Vieira nasceu na Praia, ilha de Santiago, em 29/01/1941. Foi integrante da geração dos anos 1960 da poesia cabo-verdiana. Geração marcada por uma poesia marcada pela revolta e combate ao governo colonial português, à época sob a ditadura salazarista.
Arménio Vieira escreveu quatro livros, dois de poemas e dois romances, respectivamente, “Poemas” e “Mitografias e “O eleito do sol” e “No inferno”, fora vários outros textos publicados de forma dispersa em revistas como "Fragmentos", "Boletim Imbondeiro" e "Vértice", sobretudo, em Cabo Verde.
O poeta foi recentemente agraciado com o Prêmio Camões. Pela primeira vez um autor de seu país atingiu tal reconhecimento, o que valerá para dar maior visibilidade à literatura de Cabo Verde.
Vieira foi um dos fundadores da revista Seló (1962), que seguia a proposta de publicar textos de cabo-verdianos para Cabo Verde fundamentada pela Claridade e por Certeza, marcos da literatura do arquipélago. Arménio participou com um poema no seu segundo e derradeiro número; não devemos estranhar a quantidade escassa de edições devido à forte perseguição que os opositores da ditadura sofriam, logo, qualquer manifestação com voltas à libertação das colônias era rapidamente sufocada.
A poesia de Vieira apresentava as preocupações com o estado em que se encontrava o país, relia temas pertinentes à geração claridosa como o mar, o que podemos conferir no trecho do poema publicado em Seló.
|MAR
Mar! Mar!
Mar! Mar!
Não o mar azul
De caravaelas ao largo
E marinheiros valentes
Não o mar de todos os ruídos
De ondas
Que estalam na praia
Não o mar salgado
Dos pássaros marinhos
De conchas
Areia
E algas do mar
Mar!
Raiva – angústia
De revolta contida
Mar!
Do não-repartido
E do sonho afrontado
Mar!
Quem sentiu mar?
|ISTO É QUE FAZEM DE NÓS
Isto!
E perguntam-nos:
- sois homens?
Respondemos:
- animais de capoeira.
Dizem-nos:
- bom dia.
Pensamos:
lá fora...
Isto é que fazem de nós
quando nos inquirem:
- estais vivos?
E em nós
as galinhas respondem:
- dormimos.
SANTO ANTÃO
|LISBOA – 1971A Ovídio Martins e Oswaldo Osório
Em verdade Lisboa não estava ali para nos saudar.
Eis-nos enfim transidos e quase perdidos
no meio de guardas e aviões da Portela
Em verdade éramos o gado mais pobre
d’África trazido àquele lugar
e como folhas varridas pela vassoura do vento
nossos paramentos de presunção e de casta.
E quando mais tarde surpreendemos o espanto
da mulher que vendia maçãs
e queria saber d’onde… ao que vínhamos
descobrimos o logro a circular no coração do Império.
Porém o desencanto, que desce ao peito
e trepa a montanha,
necessita da levedura que o tempo fornece.
E num camião, por entre caixotes e resquícios da véspera,
fomos seguindo nosso destino
naquela manhã friorenta e molhada por chuviscos d’inverno.
|CONSTRUÇÃO NA VERTICAL
Com pauzinhos de fósforo
podes construir um poema.
Mas atenção: o uso da cola
estragaria o teu poema.
Não tremas: o teu coração,
ainda mais que a tua mão,
pode trair-te. Cuidado!
Um poema assim é árduo.
Sem cola e na vertical,
pode levar uma eternidade.
Quando estiver concluído,
não assines, o poema não é teu.
(Textos retirados de uma antologia, ainda inédita, organizada por José Luiz Tavares)
Arménio Vieira nasceu na Praia, ilha de Santiago, em 29/01/1941. Foi integrante da geração dos anos 1960 da poesia cabo-verdiana. Geração marcada por uma poesia marcada pela revolta e combate ao governo colonial português, à época sob a ditadura salazarista.
Arménio Vieira escreveu quatro livros, dois de poemas e dois romances, respectivamente, “Poemas” e “Mitografias e “O eleito do sol” e “No inferno”, fora vários outros textos publicados de forma dispersa em revistas como "Fragmentos", "Boletim Imbondeiro" e "Vértice", sobretudo, em Cabo Verde.
O poeta foi recentemente agraciado com o Prêmio Camões. Pela primeira vez um autor de seu país atingiu tal reconhecimento, o que valerá para dar maior visibilidade à literatura de Cabo Verde.
Vieira foi um dos fundadores da revista Seló (1962), que seguia a proposta de publicar textos de cabo-verdianos para Cabo Verde fundamentada pela Claridade e por Certeza, marcos da literatura do arquipélago. Arménio participou com um poema no seu segundo e derradeiro número; não devemos estranhar a quantidade escassa de edições devido à forte perseguição que os opositores da ditadura sofriam, logo, qualquer manifestação com voltas à libertação das colônias era rapidamente sufocada.
A poesia de Vieira apresentava as preocupações com o estado em que se encontrava o país, relia temas pertinentes à geração claridosa como o mar, o que podemos conferir no trecho do poema publicado em Seló.
Parabéns pelo projeto... muito bacana!!!
ResponderExcluirSe quiser conhecer meu blog ai está o endereço:
http://www.dofonodeoxum.blogspot.com/
Sucesso!
Quero fazer parte desse grupo. Sou fotógrafo, sou negro e tenho alguns trabalhos. Fui o primeiro fotógrafo negro a ganhar(e não levar) o prêmio Vladimir Herzog de Direitos Humanos.Quero receber as notícias dessa página!
ResponderExcluirPrezado Ronaldo,
ResponderExcluirenvie os seus contatos. Teremos o prazer de divulgar o seu trabalho. Flávia Portela